A loja de antigüidades tinha o cheiro de uma arca de sacristia com seus panos embolorados e livros comidos de traça. Com as pontas dos dedos, o homem tocou numa pilha de quadros . Uma mariposa levantou vôo e foi chocar-se contra uma imagem de mãos decepadas.
- Bonita imagem- disse ele.
A velha tirou um grampo do coque e limpou a unha do polegar.
- É um São Francisco.
Ele então voltou-se lentamente para a tapeçaria que tomava toda a parede no fundo da loja. Aproximou-se mais. A velha aproximou-se também.
- Já vi que o senhor se interessa mesmo é por isso...Pena que esteja nesse estado.
O homem estendeu a mão até a tapeçaria, mas não chegou a tocá-la.
- Parece que hoje está mais nítida...
- Nítida?- Repetiu a velha, pondo os óculos. Deslizou a mão pela superfície puída- Nítida, como?
- As cores <#> estão mais vivas. A senhora passou alguma coisa nela?
A velha encarou-o. E baixou o olhar para a imagem de mãos decepadas. O homem estava tão pálido e perplexo quanto a imagem.
- Não passei nada, imagine...Por que o senhor pergunta?
- Notei uma diferença.
- Não, não passei nada, essa tapeçaria não aguenta a mais leve escova, o senhor não vê? Acho que é a poeira que está sustentando o tecido - acrescentou, tirando novamente o grampo da cabeça. Rodou-se entre os dedos com ar pensativo. Teve um muxoxo: - Foi um desconhecido que trouxe, precisava muito de dinheiro. Eu disse que o pano estava por demais estragado, que era difícil encontrar um comprador, mas ele insistiu tanto...Preguei aí na parede e aí ficou. Mas já faz anos isso.
E o tal moço nunca mais me apareceu.
- Extraordinário...
A velha não sabia agora se o homem se referia à tapeçaria ou ao caso que acabara de lhe contar. Encolheu os ombros. Voltou a limpar as unhas com o grampo.
- Eu poderia vendê-la, mas quero ser franca, acho que não vale à pena
Na hora que se despregar, é capaz de cair em pedaços.
O homem acendeu um cigarro. Sua mão tremia. Em que tempo, meu Deus! Em que tempo teria assistido a essa mesma cena. E onde?...
Era uma caçada. No primeiro plano, estava o caçador de arco retesado, apontado para uma touceira espessa. Num plano mais profundo, o segundo caçador espreitava por entre as árvores do bosque, mas esta era apenas uma vaga silhueta, cujo rosto se reduzira a um esmaecido contorno. Poderoso, absoluto era o primeiro caçador, a barba violenta como um bolo de serpentes, os músculos tensos, à espera de que a caça levantasse para desferir-lhe a seta.
O homem respirava com esforço. Vagou o olhar pela tapeçaria que tinha a cor esverdeada de um céu de tempestade. Envenenando o tom verde-musgo do tecido, destacavam-se manchas de um negro-violáceo e que pareciam escorrer da folhagem, deslizar pelas botas do caçador e espalhar-se pelo chão como um líquido maligno. A touceira na qual a caça estava escondida também tinha as mesmas manchas e que tanto podiam fazer parte do desenho como ser simples efeito do tempo devorando o pano.
- Parece que hoje tudo está mais próximo- disse o homem em voz baixa.- É como se... Mas não está diferente? A velha firmou mais o olhar. Tirou os óculos e voltou a pô-los.
- Não vejo diferença nenhuma. - Ontem não se podia ver se ele tinha ou não disparado a seta...
- Que seta? O senhor está vendo alguma seta?
- Aquele
pontinho ali no arco... A velha suspirou.
- Mas esse não é um buraco de traça? Olha
aí, a parede já está aparecendo, essas
traças
dão cabo de tudo- lamentou disfarçando um bocejo. Afastou-se sem ruído,
com
suas chinelas
de lã. Esboçou um gesto
distraído: - Fique
aí à vontade, vou fazer o meu chá.
Enxugando o suor das mãos, o homem recuou alguns passos. Vinha-lhe agora uma certa paz, agora que sabia Ter feito parte da caçada. Mas essa era uma paz sem vida, impregnada dos mesmos coágulos traoçoeiros da folhagem. Cerrou os olhos. E se tivesse sido o pintor que fez o quadro? Quase todas as antigas tapeçarias eram reproduções de quadros, pois não eram? Pintara o quadro original e por isso podia reproduzir, de olhos fechados, toda a cena nas suas minúcias: o contorno das árvores, o céu sombrio, o caçador de barba esgrouvinhada, só músculos e nervos apontando para a touceira..."Mas se detesto caçadas! Por que tenho que estar aí dentro?"
Apertou o lenço contra a boca. A náusea. Ah, se pudesse explicar toda essa familiaridade medonha, se pudesse ao menos...E se fosse um simples espectador casual, desses que olham e passam? Não era uma hipótese? Podia ainda Ter visto o quadro no original, a caçada não passava de uma ficção. "Antes do aproveitamento da tapeçaria..."- murmurou, enxugando os vãos dos dedos no lenço.
Atirou a cabeça para trás como se o puxassem pelos cabelos, não, não ficara do lado de fora, mas lá dentro, encravado no cenário! E por que tudo parecia mais nítido do que na véspera, por que as cores estavam mais fortes apesar da penumbra? Por que o fascínio que se desprendia da paisagem vinha agora assim vigoroso, rejuvenescido?...
Saiu de cabeça baixa, as mãos cerradas no fundo dos bolsos. Parou meio ofegante na esquina. Sentiu o corpo moído, as pálpebras pesadas. E se fosse dormir? Mas sabia que não poderia dormir, desde já sentia a insônia a segui-lo na mesma marcação da sua sombra. Levantou a gola do paletó. Era real esse frio? Ou a lembrança do frio da tapeçaria? "Que loucura!... E não estou louco", concluiu num sorriso desamparado. Seria uma solução fácil. "Mas não estou louco."
Vagou pelas ruas, entrou num cinema, saiu
em seguida e, quando deu
acordo de si, estava diante da
loja
de antigüidades, o nariz achatado na vitrina, tentando vislumbrar a
tapeçaria lá
no fundo. Quando chegou em casa, atirou-se de bruços na cama e ficou de olhos
escancarados, fundidos na
escuridão. A voz
tremida da velha parecia vir
de dentro do travesseiro,
uma voz sem
corpo, metida em chinelas de
lã:
"Que seta? Não
estou vendo nenhuma seta..."Misturando-se
à voz, veio vindo o murmurejo das traças em meio
das risadinhas. O algodão abafava as risadas que se entrelaçavam numa
rede esverdinhada, compacta, apertando-se
num tecido com manchas que escorreram até o
limite da
tarja.
Viu-se
enredado nos fios e quis
fugir, mas a tarja o aprisionou nos seus braços. No fundo, lá no fundo do fosso podia distinguir as serpentes
enleadas
num
nó verde-negro. Apalpou o queixo.
"Sou o caçador?"
Mas ao invés da barba encontrou a viscossidade do sangue.
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